O AMOR

Trabalhei 3 meses com crianças hiperativas, aquelas que as escolas americanas não conseguiam lidar muito bem. Muitas delas tomavam remédios para controlar o temperamento e ainda tinham um tratamento rigido com muitas regras.
Horário para tudo, nada podia passar do programado e se isso acontecesse, elas perderiam pontos em suas charts, tabelas em que desenhávamos as estrelas do dia para cada meta atingida.
As atividades iam de canoagem, basquete, vôlei, futebol, jogos no computador, uma hora com o monitor favorito, bóia no rio....
O que me fez lembrar deles agora foi o fato de ter sido escolhido o melhor monitor de 2003. E o que fez com que me escolhessem? Eu me baseava no amor, foi como enfrentei as crises em que eles acordavam no meio da noite gritando e exigindo alguma coisa como chocolate, suco ou qualquer coisa que estivesse fora de cogitação dar para eles. Eles já sabiam diferenciar entre o certo e o errado, o que podiam e o que não podiam ter a qualquer hora.
Foi o trabalho mais árduo que já tive, porém, foi o mais significativo, prazeroso e milagroso.
Todos os dias estarão marcados em mim como chagas. Foram dias dolorosos mas toda a experiência serviu para provar que o amor é a arma mais poderosa que existe.
Alguns monitores e até mesmo o diretor do camp eram formados em cursos que davam a eles todas as ferramentas para controlar as situações de risco. Aquelas em que as crianças e adolescentes colocam a vida de alguém em perigo.
Vivíamos em uma região alta próximo de Boston, com um rio lindo e imenso, havia uma mata que chamávamos de florest e algumas áreas próximas ao rio pareciam colinas.
Descrever uma cena que ficou mais marcada do que as outras seria impossível, mas com certeza existe uma que virá com mais rapidez à minha mente.
Havia uma criança que colocávamos como prioridade na nossa visão, pois a qualquer momento alguém poderia aparecer sangrando ou chorando devido às suas artes. Ele tinha aproximadamente 9 anos, era negro, magrinho e olhos grandes. Apesar de toda a sua rebeldia e tentativa de parecer violento, eu sabia que havia uma doçura que para ele ainda era desconhecida. Vários dias de momentos tensos, choros, gritos, surgiu a oportunidade de mostrar para ele o mundo que estaria esperando por ele. Em uma de suas crises, eu fiz algo que foi inesperado para ele, para os monitores e principalmente para mim. Sentei no meio do field e comecei a chorar muito forte. A ordem era de que nenhum monitor poderia interferir no processo de educação das crianças, então o próprio garoto vendo que ninguém me "socorria", foi ao meu encontro e se sentou na minha frente sem falar absolutamente nada. Olhei para ele e vi que seus olhos se encheram de lágrimas e que sua feição demonstrava um pedido de desculpas. Devido ao seu comportamento de risco para as outras crianças, ele seria enviado para casa antes que os outros. Essa idéia me torturava, pois de isso acontecesse eu não teria tempo de ajudá-lo, não poderia contar para ele o que eu já havia passado na vida para que ele pudesse ver que não era apenas a sua vida um vulcão em erupção. Eu comecei a contar para ele todos os meus traumas, carências e problemas que havia passado na minha infância. Nada de assustador, mas muitas crianças têm aquela imagem de família completa, casa feliz, viagens... e a vida não é feita apenas de nossos desejos.
A minha choradeira se dava ao fato de que ele seria mandado embora e sua vida voltaria a ser o mesmo inferno que ele tinha certeza que seria. Nossas vidas não podem ser mudadas apenas pelo nosso desejar, mas com um querer e um pensar diferente sei que isso é possível. Eu só queria mais tempo para mostrar isso para ele, de como encarei minhas fantasias desastrosas.
Dois dias de folga a cada 20 dias era o que cada monitos gozava. Sem possibilidade de descartar essa folga, mas teria algum idiota que faria isso? Sim, eu. Mas não deixaram.
Quando retornei da folga ele estava com a mala nas costas e a caminho do carro do diretor do acampamento, escrevendo isso agora parece cena de filme de drama, mas sem nenhum aumento nos detalhes foi exatamente isso que aconteceu.
Meu mundo caiu. Mas de uma coisa eu tenho certeza, ele sabe que nas poucas semanas que compartilhamos juntos, eu o amei como um irmãozinho. Ele sabe que meu amor era capaz de lutar por ele até juntos buscarmos uma solução para a vida de um garoto de 9 anos, que tinha uma mãe prostituta, padrasto que abusava dele e dos irmãos e uma casa que acolhia 7 pessoas. Fico imaginando se todos que eu amo com essa mesma intensidade sabem do que seria capaz por eles? Acretido que sim, e ainda aposto que alguns se assustam com a posibilidade desse fato.


Ouvindo: Faith Hill - There You'll Be
http://www.youtube.com/watch?v=IpaBQPspLXg&feature=related

Comentários

Adam disse…
simplesmente lindo.
Guto disse…
simplesmente lindo
Adam disse…
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